Aos 77 anos, Cleonice Vera Cruz vive há quase seis décadas na Vila da Barca, bairro centenário de Belém localizado às margens da baía do Guajará. O local é caracterizado por casas de madeira sobre palafitas, construídas para resistir às subidas da maré, e abriga atualmente uma das maiores comunidades urbanas desse tipo na América Latina.
O contraste com a vizinhança é evidente, onde apartamentos luxuosos na região das Docas receberam investimentos durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que ocorre na cidade. Cleonice relata a instabilidade das moradias: “Quando dá um vento, a casa sacode. Se passar uma pessoa aí do lado, a gente sente porque a casa balança”.
Recentes episódios de chuva reforçam a vulnerabilidade do bairro. Na madrugada de 14 de novembro, uma casa desabou, mas os moradores conseguiram escapar ilesos. Outros tiveram suas residências comprometidas, evidenciando que a crise ambiental também é social e habitacional.
Gerson Siqueira, presidente da Associação de Moradores, alerta para a falta de atenção da COP30 à população que vive em áreas de risco: “Fala-se em transição energética, mas não em cuidado com a população. E a moradia? A questão ambiental não passa também pela moradia digna?”
Racismo ambiental
Estudo da ONG Habitat para a Humanidade Brasil apresentado na COP30 aponta que 66,58% das pessoas em áreas de risco no país são negras, com mais de um terço dessas residências chefiadas por mulheres e renda média inferior à metade da média das cidades analisadas. Além disso, 20,29% não têm esgoto e 2,41% carecem de coleta de lixo adequada. Entre 2013 e 2022, cerca de 2,1 milhões de casas foram danificadas por desastres climáticos.
O perfil socioeconômico se reflete em moradores como Maria Isabel Cunha, conhecida como Bebel, mãe solo com filho PCD, que depende de pequenas faxinas para complementar a renda. Ela destaca a importância do apoio comunitário e lamenta a falta de serviços públicos essenciais.
Resposta e adaptação
Com cerca de 600 palafitas para mais de mil famílias, a Vila da Barca começou a receber melhorias de infraestrutura. A Águas do Pará instalou rede de água e esgoto no valor de R$ 15 milhões, com o abastecimento já ativo e cobrança social prevista. Apesar dos avanços, a permanência e a dignidade das famílias ainda são desafios, segundo Siqueira: “Esperamos um conjunto habitacional com moradia digna e infraestrutura adequada”.
A comunidade mantém rica vida cultural, com festas juninas, blocos carnavalescos e a passagem da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré durante o Círio de Nazaré. A ONG Habitat Brasil ressalta que apenas 8% das metas climáticas dos países incluem planos para comunidades vulneráveis, evidenciando a ligação entre crise habitacional e mudança climática.
Raquel Ludermir, da ONG Habitat, reforça: “É essencial fortalecer a resiliência dessas comunidades, garantindo segurança e habitabilidade, sem justificar remoções injustas sob o pretexto de adaptação climática”.


















