Em meio a um cenário em que o Mato Grosso registrou, apenas em 2024, um aumento de 18% nas denúncias de crimes motivados por preconceito, um caso arquivado em Água Boa reacende o debate sobre a aplicação da legislação que equipara a homotransfobia ao crime de racismo. A situação chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que agora cobra explicações formais da juíza Daiane Marilyn Vaz e do Ministério Público de Mato Grosso (MPMT).
A decisão partiu do ministro Luiz Fux, que determinou nesta terça-feira (14) que as duas autoridades prestem esclarecimentos, em até cinco dias, sobre os motivos que levaram ao arquivamento do processo. O caso envolve um servidor concursado do Poder Judiciário, lotado na 3ª Vara Criminal de Várzea Grande, que afirma ter sido alvo de ofensas homofóbicas em um grupo de mensagens.
Segundo o relato anexado à petição, um dos participantes do grupo fez comentários depreciativos sobre a orientação sexual do servidor, utilizando expressões irônicas e de cunho discriminatório. Apesar do conteúdo, o boletim policial classificou o episódio como difamação e injúria simples, crimes de menor potencial ofensivo previstos nos artigos 139 e 140 do Código Penal.
O ponto central da reclamação está no fato de que, desde 2019, o STF reconhece que a homotransfobia deve ser enquadrada como crime de racismo — entendimento consolidado na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e no Mandado de Injunção (MI) 4733. Ainda assim, o Ministério Público opinou pelo arquivamento do caso, e a juíza acolheu a manifestação, encerrando o processo sem aplicar o precedente do Supremo.
Decisão contestada e reação do STF
Para o servidor, a decisão desrespeita a autoridade das determinações do STF, que têm efeito vinculante em todo o território nacional. O ministro Fux, ao analisar o caso, entendeu ser necessário ouvir as instâncias envolvidas antes de decidir se houve descumprimento da jurisprudência. A Corte determinou que as informações sejam enviadas em caráter de urgência, considerando o impacto jurídico da questão.
Em nota, a 2ª Vara Criminal de Água Boa confirmou o recebimento do pedido do Supremo e informou que responderá dentro do prazo estipulado. O juízo explicou que o processo teve origem em um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) lavrado para apurar supostos crimes de difamação e injúria qualificada por preconceito. Em setembro, segundo a Vara, o Juizado Especial declarou extinta a punibilidade pela difamação, devido à prescrição do prazo para queixa, e remeteu o restante do caso à Justiça Comum.
O MPMT então avaliou que o fato narrado não configurava crime e pediu o arquivamento, posteriormente homologado pela magistrada. A decisão, contudo, levantou questionamentos sobre a uniformidade na aplicação das leis de combate à discriminação, especialmente após a criminalização da homotransfobia ser reconhecida em âmbito nacional.
Contexto e implicações mais amplas
Desde que o STF equiparou a homotransfobia ao racismo, os tribunais brasileiros enfrentam o desafio de uniformizar o enquadramento jurídico de casos de preconceito. Em Mato Grosso, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, 46 registros relacionados a crimes de ódio foram feitos entre janeiro e setembro de 2025 — número que representa aumento de 23% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Especialistas apontam que decisões judiciais divergentes em casos semelhantes enfraquecem a efetividade das políticas de proteção à comunidade LGBTQIAPN+. “Cada vez que um caso desses é arquivado sem análise do contexto discriminatório, reforça-se a sensação de impunidade”, avalia um promotor ouvido pela reportagem sob condição de anonimato.
O processo, que tramita sob sigilo, continua sendo acompanhado pelo Supremo. O desfecho poderá definir parâmetros importantes para futuras investigações sobre crimes de preconceito no estado. As informações foram confirmadas pela assessoria da Polícia Civil.
Casos de discriminação podem ser denunciados de forma anônima pelo Disque 100 ou diretamente nas Delegacias de Direitos Humanos de todo o país.