Em 2024, o número de disputas judiciais envolvendo atrasos em empreendimentos habitacionais cresceu 18% em Mato Grosso, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça. Nesse contexto, uma recente decisão da Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) reacendeu o debate sobre os limites da atuação das construtoras.
O colegiado determinou, por unanimidade, que um comprador de Cuiabá pudesse assumir imediatamente a posse de seu apartamento em um condomínio, mesmo diante de cobranças apresentadas pela empresa responsável pela obra. O tribunal considerou ilegítima a retenção do imóvel, citando o atraso de mais de cinco anos na entrega — o empreendimento, adquirido em 2017 pelo programa “Minha Casa, Minha Vida”, deveria ter sido concluído em dezembro de 2019, mas só foi finalizado em fevereiro de 2025.
Alienação fiduciária e direito de posse
Segundo o relator, desembargador Carlos Alberto Alves da Rocha, a construtora não possuía mais qualquer domínio ou posse indireta sobre o imóvel, já que o contrato estava formalizado por escritura pública com alienação fiduciária registrada na Caixa Econômica Federal. Esse tipo de garantia transfere a propriedade resolúvel à instituição financeira, conferindo ao comprador a posse direta e o direito de uso.
“As agravadas não detêm mais domínio ou posse indireta sobre o imóvel, carecendo, por conseguinte, de legitimidade para reter sua entrega”, destacou o magistrado em seu voto. O entendimento reforça o previsto no artigo 476 do Código Civil, que ampara o comprador que suspende pagamentos quando a outra parte não cumpre sua obrigação.
Abusividade e impacto jurídico
O tribunal ainda apontou que as cobranças apresentadas pela construtora incluíam parcelas vencidas há mais de cinco anos, o que levanta discussão sobre prescrição. Para os desembargadores, mesmo que houvesse valores devidos, a cobrança deveria ocorrer pela via judicial adequada — e jamais por meio da retenção do imóvel, considerada uma forma de coação sem respaldo legal.
De acordo com especialistas em direito imobiliário ouvidos pela reportagem, casos como este têm se tornado cada vez mais frequentes em grandes centros urbanos. Em Cuiabá, por exemplo, ao menos 14 ações semelhantes foram protocoladas desde 2023, a maioria envolvendo empreendimentos vinculados a financiamentos federais. O cenário reflete, segundo advogados, uma lacuna de fiscalização sobre prazos e entregas.
“A recusa em entregar as chaves do imóvel, mesmo após o cumprimento das obrigações principais, é uma prática abusiva e deve ser combatida judicialmente”, avaliou um advogado ouvido sob reserva. Ele observa que a decisão do TJMT tende a criar jurisprudência para outros compradores em situação semelhante.
Com a decisão, o tribunal concedeu tutela de urgência ao comprador, reconhecendo a probabilidade de seu direito e o risco de dano financeiro pela impossibilidade de usufruir do bem adquirido. O caso reacende o debate sobre a segurança jurídica nas relações de consumo no mercado imobiliário regional.
As informações foram confirmadas pela assessoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso.
Em caso de atrasos abusivos em contratos imobiliários, consumidores podem acionar o Procon-MT pelo telefone 151 ou registrar denúncia no site oficial do órgão estadual.