Fenômenos climáticos globais como o El Niño–Oscilação Sul (ENOS), com suas fases características: El Niño e a La Niña, não apenas alteraram o regime de chuvas no Brasil, mas também influenciaram diretamente a produtividade agrícola. É o que mostra um estudo inédito que analisou três décadas de dados sobre feijão, milho e soja em Goiás e no Distrito Federal. Uma pesquisa constatou que anos de El Niño registraram mais quedas de rendimento do que o esperado, enquanto o La Niña foi associado a ganhos mais frequentes.
O pesquisador da Embrapa Meio Ambiente Alfredo Luiz explica que o trabalho integra o projeto Avaliação de Risco e Resiliência Agroclimática e busca oferecer subsídios para tornar mais flexível o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC), a principal ferramenta usada no Brasil para indicar a época de plantio com menor risco climático para cada tipo de solo, cultura e município. Hoje, o ZARC estabelece dados fixos, mas os pesquisadores do estudo defendem que, com o avanço das previsões para o El Niño–Oscilação Sul, seria possível ajustar essas recomendações anualmente.
A equipe analisou séries históricas de evolução diária obtidas na Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), cobrindo 159 estações perigosas em Goiás e no DF. Como é comum no Brasil, parte desses registros apresentam falhas — problema que dificulta análises de longo prazo. Para contornar essas barreiras, os pesquisadores preencheram as lacunas usando a média histórica do mesmo dia, para cada estação. O recorte considerado foi de outubro a março, abrangendo a safra de verão, quando as culturas científicas três são semeadas e colhidas. A escolha segue as recomendações oficiais do ZARC, que indicam períodos de menor risco para cada cultura e município.
Em seguida, esses dados foram cruzados com o Índice Oceânico Niño (ION), fornecido pela National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), dos Estados Unidos. O ION é calculado a partir da diferença entre a temperatura média da superfície do mar em uma faixa específica do Pacífico Equatorial (região Niño 3.4) e sua média histórica: El Niño: Índice Oceânico Niño acima de +0,5°C; La Niña: Índice Oceânico Niño abaixo de -0,5°C; e Neutro: entre -0,5°C e +0,5°C. De 1992 a 2021, foram identificados oito anos de El Niño, oito de La Niña e 14 anos neutros.
Uma análise de produtividade sob medida
Os dados de rendimento agrícola vieram da Produção Agrícola Municipal (PAM) do IBGE. Foram incluídos 35 municípios produtores de feijão, 62 de milho e 34 de soja, todos com pelo menos 20 anos de registros no período treinado. Para evitar que o avanço tecnológico — como novas cultivares, mecanização e melhoria de manejo — mascare a influência do clima, a equipe aplicou regressões lineares por município e cultura, estimando a tendência natural de crescimento da produtividade ao longo dos anos.
Com essa linha de base definida, foram ocasionais como anomalias positivas as produtividades que superaram a estimativa em mais de um desvio-padrão e como anomalias negativas as que ocorreram abaixo desse limite. “O ajuste estatístico indicou crescimento constante na produtividade em todas as culturas e municípios. Os coeficientes de determinação médios foram de 0,47 para feijão, 0,50 para milho e 0,62 para soja, chegando a valores máximos próximos de 0,88”, destaca Fernando Macena da Silva, pesquisador da Embrapa Cerrados.
Uma análise revelou diferentes padrões de resposta ao El Niño – Oscilação Sul para cada cultura. Para o feijão, os anos de La Niña tiveram predominância de anomalias de produtividade positivas, enquanto o El Niño foi associado a mais perdas. Para o milho, apresentou desempenho acima da média em anos neutros, mas foi prejudicado no El Niño. Já a soja respondeu melhor ao La Niña, com ganhos consistentes, e teve quedas frequentes em anos neutros. No total, foram identificadas, no feijão, 359 anomalias positivas (40,2%) e 346 negativas (38,8%); no milho, 734 positivas (40,2%) e 701 negativas (38,4%) e, na soja, 442 positivas (44,7%) e 342 negativas (34,6%).
Mapas e distribuição espacial
Para representar espacialmente as variações, os pesquisadores interpolaram os dados de ocorrência usando o método da Krigagem, gerando três mapas — um para El Niño, outro para La Niña e um para anos neutros. A espacialização revelou que o La Niña concentrou maiores volumes de chuva, especialmente nas regiões central e norte de Goiás, enquanto o El Niño esteve associado a menores índices pluviométricos. Nessas áreas, precipitações anuais entre 1.100 e 1.300 milímetros durante a safra coincidiram com mais anomalias positivas de produtividade, especialmente para soja e feijão.
Segundo Marcos Neves, também pesquisador da Embrapa Meio Ambiente envolvido na pesquisa, “a análise dos mapas permite perceber um maior número de anomalias negativas em anos de El Niño e neutros, particularmente na soja, e uma concentração de ganhos em La Niña”.
Por que isso é importante para o produtor
A definição da época de semeadura é uma das decisões mais estratégicas no manejo agrícola, já que pode significar a diferença entre uma boa colheita e um prejuízo. É também uma medida que está ao alcance direto do produtor.O ZARC, reconhecido como uma das tecnologias públicas mais bem-sucedidas da Embrapa, já orienta esse planejamento, mas suas recomendações são fixas — ainda não incorporam as oscilações anuais causadas pelo El Niño–Oscilação Sul.
Segundo os autores, incluir variações de El Niño ou La Niña, usando indicadores disponíveis para o período anterior ao início da safra, poderia permitir ajustes finos na escolha dos dados de planejamento, reduzindo riscos e melhorando a resiliência dos trabalhos frente às mudanças climáticas. As mudanças climáticas tendem a aumentar a frequência e a intensidade de eventos extremos, ampliando a importância da variação climática global no planejamento agrícola.
O estudo que reforça que compreender e monitorar o El Niño – Oscilação Sul pode ser decisivo para proteger a segurança alimentar e a competitividade da agricultura no Cerrado. Os próximos passos do projeto Avaliação de Risco e Resiliência Agroclimática incluem o desenvolvimento de modelos que integram essas informações ao ZARC, permitindo que políticas públicas e estratégias de manejo no campo acompanhem, ano a ano, as oscilações do clima global.