Às margens do rio Juruena, na aldeia Pé de Mutum, Terra Indígena Japuíra, aconteceu um dos encontros mais emblemáticos dos últimos anos: a 5ª Assembleia das Mulheres Indígenas de Mato Grosso, realizada entre os dias 7 e 10 de julho. Representantes de todas as regiões do estado estiveram presentes para discutir propostas para a etapa estadual da conferência e eleger a nova coordenação do Departamento de Mulheres da Fepoimt (Federação das Organizações e Povos Indígenas de Mato Grosso).
Conferência histórica e luta por visibilidade
O evento marcou a preparação para a 1ª Conferência Nacional das Mulheres Indígenas, que ocorrerá entre 2 e 8 de agosto, em Brasília, durante a IV Marcha das Mulheres Indígenas. Em um cenário político desafiador, as lideranças reivindicaram mais participação das mulheres indígenas nos espaços de decisão, tanto dentro quanto fora das aldeias.
Durante os quatro dias de assembleia, as mulheres discutiram cinco eixos principais: direito e gestão territorial, emergência climática, políticas públicas e violência de gênero, saúde, educação e a transmissão dos saberes ancestrais. As propostas elaboradas seguem agora para a etapa regional, chamada de Samaúma, em Rio Branco (AC), e posteriormente para a conferência nacional.
“A conferência é a primeira feita especificamente para as mulheres indígenas. É um processo de muita luta”, destacou Marinete Tukano, coordenadora da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab).
Maria Anarrory Yudjá, coordenadora do Departamento de Mulheres da Fepoimt, reforçou: “Não estamos invisíveis. É essencial que nossas pautas, construídas por nós mesmas, sejam escutadas e consideradas nos espaços públicos”.
O grito por saúde digna
Entre os principais relatos das participantes, a situação da saúde indígena gerou indignação. Falta de transporte para pacientes, ausência de acompanhamento espiritual por pajés nos hospitais, demora no diagnóstico, mortes evitáveis e violência obstétrica foram apontadas como violações recorrentes.
“Muitas vezes as mulheres indígenas em trabalho de parto esperam mais do que as não indígenas. Isso não é justo”, denunciou uma das participantes.
Além disso, parteiras tradicionais como Ruth Kawanaru, do povo Karajá, relataram a perda do costume dos partos naturais. “Hoje, muitas estão optando pela cesárea sem necessidade. Eu conheço a gravidez, sinto a posição da criança e sei como ajudar. O parto normal é muito mais saudável”, contou Ruth, que pretende formar novas parteiras.
Outro alerta foi sobre o uso excessivo de celulares. “Afasta os jovens da convivência familiar e prejudica a saúde mental”, afirmou Marileide Rikbaktatsa. A psicóloga Jaqueline Aparício, do DSEI Kayapó, também destacou os riscos: vício em jogos, acesso precoce à pornografia e dependência emocional.
Educação aliada aos saberes ancestrais
A educação foi abordada como ferramenta essencial para a preservação da identidade. As mulheres cobraram melhorias na merenda escolar, criticando a introdução de alimentos industrializados nas escolas.
“O que mais causa diabetes na gente é o excesso de açúcar. As crianças estão consumindo muita comida da cidade, e isso não faz bem”, relatou Dalila Kutitiko, do Xingu.
Propostas como materiais pedagógicos, aplicativos e livros no idioma materno foram sugeridas para fortalecer o ensino próprio. Domingas Rikbaktatsa reforçou: “Nossa cultura, nossas pinturas, nossa medicina, nossos rituais… tudo isso precisa ser valorizado e repassado para as novas gerações”.
Enfrentamento da violência e protagonismo feminino
No eixo de políticas públicas e violência de gênero, as mulheres propuseram atividades educativas sobre direitos, formação política e rodas de conversa com homens e meninos sobre respeito e equidade. Reforçaram também a importância de terem autonomia na elaboração e execução de projetos.
“A gente precisa escrever nossos próprios projetos, gerenciar nossos recursos. Isso é autonomia de verdade”, defendeu Alawero Mehinako, da TIX.
Defesa do território e protagonismo na gestão
O debate sobre o território foi marcado por um mapeamento das terras indígenas e seus instrumentos de gestão. As participantes defenderam a demarcação dos territórios e a presença das mulheres em todos os processos de gestão ambiental.
Elas exigiram participação nas reuniões dos planos de gestão territorial e ambiental (PGTAs), nos protocolos de consulta e nos trabalhos de vigilância, junto aos homens. O momento político também foi avaliado como delicado, com o Congresso promovendo propostas que ameaçam direitos constitucionais dos povos indígenas.
Emergência climática: a resposta são elas
Com a realização da COP30 no Brasil, a crise climática ganhou espaço nos debates. As indígenas reforçaram que seus conhecimentos são fundamentais para combater as mudanças climáticas. “A resposta somos nós”, diz o lema da marcha que ocorrerá em Brasília.
Elas propuseram o plantio de sementes nativas, restauração de áreas degradadas, formação de brigadas de incêndio e o cumprimento das leis ambientais. “Tem muita mulher que quer entrar nas brigadas, mas não tem chance. Isso precisa mudar”, afirmou Eliane Xunakalo, presidente da Fepoimt.
Delegadas de Mato Grosso na etapa regional
Foram escolhidas 15 delegadas para representar Mato Grosso na etapa Samaúma. Entre elas, Ana Terra Yawalapiti, Belua Karajá, Maria Sayaka Kamayura e Sinara Balatibone. “Se a gente estiver unida, vai superar os desafios de cada uma aqui presente”, disse Sebastiana Chiquitano durante o encerramento.
A coordenadora Maria Anarrory Yudjá destacou a força do grupo: “Essas mulheres mostram que o movimento indígena feminino de Mato Grosso está vivo, firme e disposto a lutar por respeito e valorização em todas as instâncias”.
Nova coordenação do departamento de mulheres da Fepoimt
Durante a assembleia, também foi eleita a nova equipe do Departamento de Mulheres da Fepoimt. Eliane Xunakalo enfatizou a importância de uma participação ativa: “Queremos lideranças comprometidas, que tragam as demandas e ajudem a construir soluções”.
Foram eleitas:
- Maria Anarrory Yudjá – Coordenadora geral
- Maria Devanildes Kaiabi – Coordenadora de captação de recursos
- Eliene Rikbatsa – Coordenadora de campo
Também foram definidos os conselhos regionais, com representantes de várias etnias e regiões, como Dazia Maria Mani (Noroeste), Osmarina Morimã (Norte) e Kujãesage Kayabi (Xingu). “Precisamos acertar onde erramos e seguir juntas, inclusive com os homens ao nosso lado”, declarou Osmarina, recém-eleita para a coordenação norte.
Parcerias e apoio ao evento
A assembleia teve apoio da Funai, Prefeitura de Juína, Setasc, DSEI Vilhena, Programa REM, WWF, Instituto Centro de Vida (ICV) e da OPAN (Operação Amazônia Nativa), por meio do projeto Berço das Águas, patrocinado pela Petrobras. O projeto atua no fortalecimento das organizações indígenas e da sociobiodiversidade nos territórios Rikbaktsa, Apiaká e Munduruku.