Pesquisadores da Embrapa Pesca e Aquicultura (TO) deram um passo importante na reprodução artificial do pirarucu ( Arapaima giga s), espécie amazônica ameaçada de extinção e altamente valorizada na gastronomia e até pela indústria da moda. Pela primeira vez, foi possível analisar e descrever as células espermáticas do peixe e comprovar a previsão de coleta de esperma, avanço considerado essencial para garantir a oferta de alevinos e atender à crescente demanda do setor produtivo por uma reprodução artificial (fora do corpo do animal), como ocorre com outras espécies de peixes criados em cativeiro.
Frutos de quase uma década de estudos, os resultados foram publicados na revista científica Fishes e se deram no âmbito do projeto internacional Aquavitae, o maior consórcio científico mundial voltado para aquicultura, e que abrange o Atlântico e regiões banhadas por esse oceano ( veja quadro no fim da matéria ). “Esse é mais um marco em uma pesquisa que já dura nove anos e agora foca na criopreservação de material genético para a conservação e reprodução artificial da espécie”, relata Lucas Torati , pesquisador que lidera o estudo.
Diferentemente da tilápia ( Oreochromis niloticu s), por exemplo, cuja reprodução em cativeiro já está consolidada há anos, a domesticação do pirarucu é um dos maiores desafios da ciência. Ainda hoje boa parte do setor produtivo realiza a sua reprodução de forma natural. Estima-se que, num universo de 10 a 15 casais formados numa propriedade, apenas três ou quatro irão se reproduzir a cada ano.
Olhando nesse cenário, os cientistas pretendem consolidar um protocolo para a reprodução artificial da espécie, de modo que a oferta de alevinos seja constante ao longo do ano, uma antiga demanda do setor produtivo. O primeiro desafio foi encontrar um método para identificar machos e fêmeas. Torati explica que a dificuldade de diferenciar os sexos da espécie faz com que os criadores povoem os viveiros aleatoriamente na tentativa de formar casais. Quando um casal se formava, era colocado em um viveiro menor, mais fácil de se manter o controle dos peixes.
Como resposta ao problema da sexagem, os pesquisadores desenvolveram um método de canulação ( foto e vídeo abaixo ). Um tubo estreito é inserido no “oviduto” do animal permitindo distinguir o sexo e ainda verificar o grau de maturidade das fêmeas. “Um piscicultor que trabalhou conosco nessa pesquisa obteve margens muito superiores de sucesso na reprodução do pirarucu, só pelo fato de ele usar a canulação”, conta Torati.

Salto de duas para sete reproduções anuais
O piscicultor em questão é Moisés Zorzeto Neto, dono da Piscicultura Raça, em Canabrava do Norte (MT). Depois que ele aprendeu a técnica de canulação, sua produção de alevinos aumentou consideravelmente. “Antes, conseguíamos uma ou duas reproduções por casal por ano. Com a técnica, esse número subiu para até sete”, relata Zorzeto, que há 18 anos produz alevinos de cinco espécies de peixes. A inovação o ajuda a organizar matrizes reprodutoras e aumenta a eficiência do manejo em cativeiro.
Reprodução de peixes nativos: um desafio científico
Embora tecnologias para a reprodução de espécies como tilápia e salmão sejam bem condicionais, o mesmo não ocorre com peixes nativos brasileiros. Espécies como o tambaqui, por exemplo, dependem de terapia hormonal para ovular em cativeiro.
No caso do pirarucu, até 2010 poucos métodos conseguiam distinguir machos e fêmeas, pois não havia uma ferramenta segura e disponível para confirmar o sexo dos peixes. “Àquela época, nem se fala em reprodução artificial do pirarucu. Mesmo porque procedimentos corriqueiros em outras espécies, como a coleta de gametas, era algo considerado impossível para o pirarucu”, conta Torati.
Um dos grandes empecilhos para a reprodução causada pelo pirarucu estava na falta de tecnologias para a realização de uma biópsia ovariana na espécie, algo fundamental para se avançar com as terapias hormonais desejadas. Para resolver o problema, foram feitos estudos de anatomia do peixe com a utilização de um ureterorrenoscópio, endoscópio utilizado para a remoção de desenho renal em seres humanos.
Durante os estudos, os cientistas perceberam que a anatomia do pirarucu é diferente de outros peixes, os quais possuem um oviduto propriamente dito aqui. “Em certo momento, depois de entender a anatomia do peixe, consegui substituir o ureterorrenoscópio por uma cânula duracida com um arame dentro dela. Com essa cânula duradoura conseguiu acessar uma cavidade celomática do animal, onde fica o ovário. Isso possibilitou que conseguíssemos distinguir machos e fêmeas com um acerto entre 80% a 100% e viabilizou identificar quais fêmeas são maduras e aptas para receber o hormonal e induzir sua reprodução”, detalha o pesquisador da Embrapa.
O desafio da coleta do sêmen do pirarucu
No início do projeto Aquavitae, em 2019, o maior desafio foi coletar o sêmen do pirarucu. “Nas primeiras coletas, começamos a encontrar problemas de contaminação com urina. Ao coletar esperma de qualquer espécie, não pode ter água ou urina junto, pois o espermatozóide é ativado. Por isso, estávamos desenvolvendo uma técnica para bloquear o canal urinário a fim de fazer uma coleta adequada”, pontua Luciana Ganeco-Kirschnik , pesquisadora da Embrapa, que participou do trabalho.
Após vários testes, a equipe conseguiu publicar o trabalho Possibilidade de coleta de sêmen do pirarucu e descrição das células espermáticas , no qual são descritas, pela primeira vez, a anatomia do espermatozóide – que possui dois flagelos –, rico em mitocôndrias; o tempo de motilidade e a técnica de coleta do sêmen sem contaminação com urina.
“Esse foi o principal resultado do projeto Aquavitae. O próximo passo é conseguir pegar o momento da ovulação das fêmeas, para conseguir coletar ovócitos ( foto à esquerda ) e realizar uma fertilização artificial com a nova técnica de extração de sêmen do macho”, revela Torati. “Futuramente, abriremos uma nova linha de pesquisa: a criopreservação do sêmen do pirarucu, tal como é feito com outras espécies”, acrescenta Ganeco.

Sobre o Aquavitae
Orçado em oito milhões de euros oriundos majoritariamente do programa Horizonte 2020 , da União Europeia, o Aquavitae reuniu 29 instituições de 16 países americanos, africanos e europeus com o objetivo de aumentar a produção aquicola por meio de pesquisas no prazo de quatro anos.
Segundo o pesquisador Eric Arthur Routledge , da Gerência Geral de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa, o consórcio internacional é uma conquista valiosa. “Ele é fruto de dez anos de esforços que envolveram o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) com a participação da Embrapa e algumas universidades brasileiras de referência em aquicultura”, conta.
Routledge relata que esses músculos geraram os subsídios para que o governo brasileiro e a Comunidade Europeia formalizassem, em julho de 2017, o acordo de cooperação em pesquisa e inovação do Atlântico, a “Declaração de Belém”, assinada pelo Brasil, África do Sul e União Europeia. Isso viabilizou pela primeira vez a participação do Brasil no consórcio internacional que aprovou, no final de 2018, o projeto Aquavitae, cuja primeira reunião ocorreu em junho daquele ano, na Noruega.
As pesquisas sobre protocolos para a reprodução do pirarucu foram realizadas em parceria com a Universidade Estadual Paulista ( Unesp ) e o Instituto Norueguês de Pesquisa Alimentar ( Nofima ), que coordena o Aquavitae.
Uma das principais características do Aquavitae foi a expressiva participação do setor produtivo em todos os países em que o projeto foi executado. No Brasil, houve sete parceiros da indústria, como a Primar Aquacultura, e a Associação Brasileira de Piscicultura (Peixe BR), representadas no projeto pela Piscicultura Fazenda São Paulo, em Brejinho de Nazaré (TO). “Essa proximidade permitiu que as pesquisas fossem realizadas em sintonia com as demandas do setor produtivo”, ressalta Torati.